PARA ALÉM DO BEM E DO MAL
“Permitiremos tudo, até os nossos pecados”, sentenciava o escritor Fiódor Dostoiévski, no seu livro Irmãos Karamazov, antecipando, como profeta literário – os melhores profetas parecem ter sido sempre os literários –, um mundo novo alicerçado no falhanço e na contração dos valores a ponto de cultivar os mais medíocres.
Dostoiévski punha a sentença na personagem de um Grande Inquisidor e na análise da missão da Igreja e apresentava-nos um Cristo que, mal regressado à Terra, era encarcerado, precisamente por ordem da Igreja.
Para um dos irmãos Karamazov, Ivan, o mal é injustificável, e começa logo por manifestar-se na ausência da providência divina quando permite o sofrimento da criança mais inocente. (Pouco antes de ser morto no Afeganistão, num atentado que vitimou dezenas de pessoas, Shah Marai, fotojornalista da France Presse, tinha fotografado um menino assim. A sorte de ambos cruzou-se. A morte escolheu-o).
Sim, lembrei-me deste cenário de Dostoiévski, lido há muitos anos. Ainda hoje recordo o terror em que eu ficava, menino ainda a tornar-me adolescente e a ler O Crime e Castigo ou as aventuras dos Karamazov – e como já então desejava outra sorte para o mundo.
Veio o texto à memória, estando eu agora em Viena de Áustria, para um encontro internacional sobre Paz. Aqui, à minha volta sinto uma certa euforia, como se melhores dias estivessem a chegar, apenas porque as duas Coreias manifestaram o interesse de uma aproximação.
A felicidade, quando emana de gente frágil como nós, merece sempre alguma apreensão.
O que vi recentemente na Coreia, em fevereiro deste ano, foi o interesse económico de toda uma península e a ilusão de que o capital pode falar mais alto do que qualquer voz feita de alguma moral. Donald Trump, apesar de ser um líder de opereta, tem o poder efetivo (e corre o risco) de tornar-se um símbolo mundial, não porque promoveu a paz entre os homens de boa vontade, mas porque, como bom negociante de tijolo e argamassa, conseguiu aliciar os coreanos com a fantástica maqueta da reconstrução civil, do progresso económico, das mais-valias, das linhas de crédito e das engenharias financeiras.
Como um rapazinho feliz, a quem foram dadas as consolas e os jogos de última geração, e todas as cadernetas e cromos a perder de vista, Kim Jong-un, que minutos antes era a maior ameaça do mundo, saltita, segundos passados, sobre a linha simbólica do paralelo 38, a fronteira entre os países, Coreia do Norte e Coreia do Sul, de mão dada com Moon Jae-in, como se fossem meninos de escola, criados em comum e donos e senhores do mesmo pátio de recreio. Todos sabemos que até esses meninos – todos nós – se pegam e esbofeteiam quando o cansaço chega e a disputa se instala (por motivos fúteis ou grandes causas como um berlinde abafador, uma boneca de tranças, um comboio que apita, um Darth Vader asmático e a sua espada de luz – os nossos tesouros que defendemos sincera e rudemente).
A sensível euforia que notei em Viena de Áustria, é um pouco precoce. Desde Platão a Hannah Arendt, passando por muitos outros filósofos preocupados, sempre se perguntou de onde vem o mal, se a justiça deve passar pelo perdão ou pela reconciliação, se um terrorista, um torcionário, um violador ou um assassino em série devem ser considerados seres humanos ou colocados numa categoria punitiva que nos livre das suas ações e consequências.
Penso em tudo isto, à distância de três horas e meia da minha terra – tempo calculado em travessia voadora sem greves de pessoal de terra ou de cabina e outras diatribes do espaço aéreo. Chega-me entretanto que gente sem princípios andou à pancada num jogo de rugby em Lisboa, sendo que o rugby era considerado entre todas as modalidades um jogo “aparentemente de arruaceiros, mas praticado por cavalheiros”. Suspenso a escrita para meditar. Um dedo aponta para mim. Não sei se sou eu a identificar-me, se algum extraterrestre a querer dizer: ali está um planeta a evitar.
Alexandre Honrado
Historiador